Uma vez, um moço que tocava violão me falou que o amor são pequenas lagartas que moram em nosso estômago e que devemos mantê-las sempre lá. Fiquei me perguntando sempre porque deixá-las guardadas se elas são criaturinhas tão pequenas, rastejantes e inofensivas... Depois de tanto refletir sobre isso, resolvi deixar algumas pequenas escaparem de propósito, com muita diligência.
As pequenas danadas, assim que viram a luz do sol, transformaram-se imediatamente em borboletas lindas de asas coloridas e aspecto amigável. Voavam livremente pelos ares acessíveis e sempre me traziam, ao final do dia, agradáveis aromas florais.
Mas.... uma pequena rastejante permaneceu em meu estômago, eu tinha me esquecido de libertá-la. Ela desceu para meu intestino e me causou uma infecção generalizada quando começou a roer as paredes das minhas vísceras.
Essa coisa ficou um tanto “absurda” aos moldes kafkianos e, na dor terrível, entrei em estado de delírio, a febre dominou meu corpo, e fui submetida ao coma induzido...
Minha mente executava viagens surreais arbitrariamente, sem que eu pudesse ter qualquer controle ou qualquer vontade.
Numa tarde seca e fria, com o sol se pondo na janela do hospital, Gregor Samsa metamorfoseado em inseto repugnante me visitou possuído de um sentimento de reação inexistente em sua primeira narrativa. Seu ódio era contra mim. E, com toda a fúria dos titãs homéricos, Samsa invadiu minha segurança como um criminoso incestuoso consciente e orgulhoso de seu pecado.
.
.
.
Tive uma gestação difícil. Meu ventre abrigou um feto por nove exatos meses durante meu coma induzido... E a lagarta continuava a me devorar viva, enquanto médicos engajados tentavam reconstruir meus órgãos com células-tronco.
Com muita insanidade, alguém que não reconheço acreditou que deveria-se executar o “parto natural”, mas bem no meio do caminho, os problemas se agravaram, sendo então obrigado a usar o fórceps no meu esfíncter vaginal. Embora eu estivesse “anulada” de minha consciência, senti a dor em meio a mais uma das viagens que em meus mais felizes momentos assemelhavam-se a quadros de Magritte.
Muita dor, muita dúvida, muito medo.
Minha mãe, em homenagem ao sentimento mais comum de toda a minha vida, e com muito receio de não ouvir mais a minha voz, deu à minha criança o nome de Tristeza.
10 anos se passaram.
As borboletas ainda viviam e voavam pelos belos jardins do mundo, minha criança já era pré adolescente, e nunca mais voltei a ver Gregor Samsa, após sua segunda visita, que aconteceu depois do parto, na qual ele abriu meu ventre e devorou a lagarta que me aniquilava.
Enfim eu despertei! Acordei de um sono profundo de contos de fadas. Em minhas lembranças, eu sabia que era mãe. Toda magra e debilitada ainda queria sentir o gosto da felicidade e resolvi levar minha bela criança para passear. Por acaso não tão acaso passamos pelo quintal de uma casa em que minhas borboletas estavam a visitar. Minha querida filha Tristeza estava com muita fome e seu prato favorito era borboletas coloridas... De uma só bocada, não vi existir mais nenhum ser alado em meu redor...
Um dia desses, encontrei o moço do violão e contei a ele toda essa história, mas ele não acreditou em mim...